A crise global desencadeada pela pandemia de 2020 reposicionou a inovação no centro das discussões sobre desenvolvimento econômico e social. Diferente de períodos de recessão anteriores, quando investimentos em pesquisa e desenvolvimento tenderam a cair precipitosamente, este período revelou uma resiliência notável nos sistemas de inovação, especialmente naqueles setores cuja contribuição foi essencial para a resposta à crise. Mas esta constatação carrega uma questão incômoda: se a inovação se mostrou resiliente, por que muitas economias ainda enfrentam obstáculos para transformar esse potencial em desenvolvimento consistente e equitativo?
O índice de 2021 que analisa 132 economias fornece evidências contundentes sobre a capacidade dos sistemas de inovação em absorver choques econômicos severos. Publicações científicas cresceram 7,6 por cento em 2020. Investimentos governamentais em pesquisa continuaram a crescer. Depósitos internacionais de patentes atingiram recorde histórico, com expansão de 3,5 por cento, impulsionada especialmente por tecnologia médica, medicamentos e biotecnologia. Operações de capital de risco cresceram 5,8 por cento, superando a taxa média de crescimento dos dez anos anteriores. Esses números desafiam narrativas simplistas sobre o impacto destrutivo da crise na criatividade humana. Simultaneamente, porém, revelam uma verdade mais complexa: nem toda inovação se distribui uniformemente, nem todos os setores e regiões se beneficiam dessa resiliência.
A divergência entre setores é reveladora. Empresas cuja inovação estava no coração das medidas de contenção e mitigação da pandemia – software, tecnologia da informação e comunicação, equipamentos elétricos e biotecnologia – intensificaram seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Aquelas cujos modelos dependem de atividades presenciais e deslocamento – transportes, turismo, viagens – reduziram seus investimentos. Esse padrão ilustra um princípio fundamental: a inovação não emerge de um vácuo, mas responde aos sinais de mercado, políticas governamentais e necessidades sociais imediatas. A pandemia, portanto, não apenas testou a resiliência da inovação, mas também redefiniu suas prioridades e direções.
Quando se examina a geografia global da inovação, o quadro torna-se ainda mais desafiador. Apenas um reduzido conjunto de economias mantém posição de liderança consistente. Suíça, Suécia, Estados Unidos e Reino Unido permaneceram entre os cinco primeiros por três anos consecutivos. A maioria das economias inovadoras entre as 25 melhores são originárias da Europa e América do Norte. Essa concentração de capacidade inovadora em determinadas regiões não é acidental; reflete décadas de investimento em educação, infraestrutura, instituições estáveis e mercados sofisticados. Mas levanta questões sobre sustentabilidade política e viabilidade de modelos de desenvolvimento que dependem da inovação importada.
Há, contudo, movimento em direção a uma reconfiguração mais dinâmica da paisagem global de inovação. Economias de renda média começam a desafiar a hegemonia dos atores tradiconais. A região da Ásia Oriental, Sudeste Asiático e Oceania apresenta a dinâmica mais acelerada dos últimos dez anos, fechando gradualmente o hiato com América do Norte e Europa. Cinco economias asiáticas figuram entre as 15 mais inovadoras globalmente. China consolidou-se como única economia de renda média entre as 30 melhores, demonstrando avanços notáveis especialmente em indicadores de resultado da inovação. Mas mesmo aqui, a história é matizada: enquanto China excede em produção de patentes e marcas registradas, fica atrás em capital humano especializado e sofisticação institucional. O caminho para a liderança inovadora sustentável não é linear nem reversível facilmente.
Um fenômeno particularmente intrigante é a emergência de economias que superam expectativas relativas ao seu nível de desenvolvimento. Índia, Quênia, República da Moldávia e Vietnã mantêm esse status há onze anos consecutivos. Neste ano, Brasil, Irã e Peru alcançam esse patamar pela primeira vez, sinalizando potencial para transformações mais profundas. Essas economias demonstram que desenvolvimento inovador não é exclusividade das nações mais ricas, mas depende fortemente de escolhas políticas, prioridades governamentais e alinhamento estratégico de recursos. O fato de que são principalmente economias em desenvolvimento – e frequentemente de grande população – que emergem como inovadores resilientes sugere que a próxima década pode testemunhar reconfiguração significativa.
Porém, a resiliência não deve ser confundida com êxito estrutural. Muitas economias enfrentam desafios profundos em traduzir insumos de inovação em resultados mensuráveis. Alguns países de renda alta investem abundantemente em pesquisa, mas falham em converter essas pesquisas em produtos, serviços ou modelos de negócio inovadores. O Catar, por exemplo, apresenta ranking mais alto em insumos de inovação do que em resultados, sugerindo que capital financeiro e infraestrutura, por si sós, são insuficientes. Inversamente, a República Tcheca produz níveis de resultado similares a Singapura e Japão com significativamente menos insumo, indicando que eficiência de conversão depende também de qualidade institucional, ambiente de mercado e capacidade de colaboração.
Os dados sobre investimento em pesquisa e desenvolvimento merecem escrutínio particular. Mundialmente, investimentos em P&D - Pesquisa e Desenvolvimento (ou I&D - Investigação e Desenvolvimento), atingiram pico histórico pouco antes da pandemia, crescendo 8,5 por cento em 2019 – muito acima do crescimento do produto interno bruto, que ficou em 2,4 por cento. Isso reflete confiança de governos e empresas em que a inovação é motor de competitividade e crescimento. Quando a pandemia eclodiu, esperava-se contração similar à observada nas crises dos anos 1990 e 2000. Dados corporativos de 2020, contudo, mostram resiliência inesperada: sessenta por cento das maiores empresas de P&D do mundo reportaram aumento de investimentos. Governos continuaram expandindo orçamentos para pesquisa. Essa resiliência fiscal e corporativa em período de incerteza extrema levanta questões sobre como foram alocados recursos e se toda essa inovação se traduziu em benefícios sociais equitativos.
O campo da saúde global ilustra tanto as promessas quanto as tensões da inovação contemporânea. Desenvolvimento de vacinas contra covid-19 em tempo recorde – dezesseis meses do surgimento do patógeno à administração em larga escala – representou um triunfo extraordinário. Tecnologias de ácido ribonucleico mensageiro, que haviam recebido investimento por duas décadas, encontraram aplicação emergencial e salvaram milhões de vidas. Simultaneamente, however, disparidades no acesso global às vacinas revelaram que inovação, por brilhante que seja, não automaticamente resolve inequidades. Economias pobres e de renda média enfrentaram anos de espera por acesso aos mesmos tratamentos que economias ricas desfrutavam semanas após aprovação.
A transformação digital acelerou-se sob pressão da pandemia, particularmente em saúde. Telemedicina, prontuários eletrônicos, aplicações de monitoramento remoto e plataformas de diagnóstico assistido por inteligência artificial expandiram-se rapidamente. Essas inovações promovem eficiência e melhor acesso em alguns contextos; em outros, aprofundam desigualdades digitais existentes. Populações sem conectividade confiável, alfabetização digital limitada ou acesso a dispositivos apropriados veem-se excluídas de sistemas inovadores. A pergunta que persiste é se inovação em saúde está sendo desenvolvida e implementada com atenção suficiente à equidade e inclusão, ou se segue lógicas puramente comerciais que priorizam mercados lucrativos.
Propriedade intelectual emerge como eixo crítico nesse contexto. O índice rastreia pedidos internacionais de patentes, marcas registradas, desenhos industriais e indicadores de difusão de conhecimento. A concentração de propriedade intelectual em economias desenvolvidas permanece pronunciada, embora China tenha feito avanços notáveis. Quando conhecimento e tecnologia são protegidos por regime restritivo de propriedade intelectual, surgem tensões entre incentivos a inovadores e acesso ao conhecimento por parte da sociedade. Medicamentos patenteados, técnicas proprietárias e tecnologias fechadas criam barreiras que afetam particularmente economias de renda baixa e média. Reguladores, legisladores e sociedade civil enfrentam pressão crescente para repensar equilíbrio entre proteção de inovadores e bem público.
A questão do capital humano é mais premente ainda. Inovação de qualidade exige pesquisadores treinados, engenheiros competentes, cientistas de dados sofisticados e profissionais capazes de transformar ideias em aplicações práticas. Economias que aumentam sistematicamente investimento em educação avançada, que atraem talentos internacionais e que valorizam trabalho técnico e criativo tendem a ascender em rankings globais de inovação. Inversamente, aquelas que negligenciam educação, que veem êxodo de talentos ou que não remunem adequadamente profissionais qualificados acumulam desvantagens crescentes. A educação não é apenas insumo passivo; é decisão política carregada de ideologia sobre que tipo de futuro uma sociedade quer construir.
Os clusters de ciência e tecnologia fornecem lentes úteis para entender dinâmicas espaciais da inovação. Tóquio-Yokohama continua como o cluster mais produtivo globalmente, seguido por Shenzhen-Hong Kong-Guangzhou e Beijing. Mas a composição entre os 100 principais clusters está mudando. Clusters chineses apresentam crescimento mais pronunciado em produção científica e tecnológica. Novos centros emergem em Delhi, Mumbai e Istambul. Esses aglomerados não surgem aleatoriamente; resultam de investimento público deliberado, políticas de atração de talentos, incentivos fiscais e, frequentemente, disposição de governos de tolerar experimentação e aceitarem fracassos como parte do processo inovador. O que distingue Silicon Valley de dezenas de outras tentativas de criar "hubs" de inovação é menos geografia natural do que decisões políticas cumulativas ao longo de décadas.
Regulação e inovação habitam tensão permanente. Marcos regulatórios podem estimular ou sufocar criatividade, dependendo de como são desenhados. Regulação excessiva que impõe barreiras burocráticas à entrada de novos atores desestimula inovação. Regulação inadequada que negligencia segurança, privacidade ou impacto ambiental permite inovação destrutiva. Setores altamente regulados – como saúde, energia, finanças – enfrentam dilema particular: como inovar rápido em um contexto que demanda validação científica, aprovação governamental e monitoramento pós-mercado rigoroso? A resposta não está em desregulação indiscriminada, mas em regulação inteligente que evolui junto com tecnologia, que incorpora aprendizado contínuo e que mantém foco explícito em equidade e bem público.
O panorama pós-pandemia sugere que inovação responsável deixa de ser conceito abstrato para se tornar imperativo prático. Lideranças públicas e privadas enfrentam pressão de conciliar competitividade, sustentabilidade econômica e impacto social positivo. Isso inclui repensar inovação não apenas como diferencial de mercado, mas como instrumento potencial de redução de desigualdades, fortalecimento de sistemas e promoção de bem-estar. Para isso, é necessário que recursos, poder decisório e benefícios sejam distribuídos com maior equidade. Inovação que beneficia apenas pequena elite de acionistas e consumidores abastados não é legítima em democracias que aspiram a universalidade de direitos.
O tempo entre invenção e adoção também merece atenção crítica. Ciclos de desenvolvimento tecnológico em algumas frentes – inteligência artificial, biotecnologia, energia renovável – estão acelerando. Ciclos regulatórios e de adoção institucional frequentemente permanecem lentos. Essa assimetria cria tensões: pressão por acelerar acesso a soluções inovadoras em conflito com necessidade de garantir segurança, eficácia e custo-benefício em ambientes de complexidade extrema. A solução não está em escolher um extremo, mas em reconhecer que diferentes contextos exigem velocidades diferentes. Vacinas exigem urgência diferente de medicamentos para doenças crônicas. Algoritmos de diagnóstico exigem rigor de validação distinto de aplicativos de bem-estar. Reguladores e inovadores precisam trabalhar juntos para estabelecer processos que permitam rapidez sem negligenciar segurança.
Finalmente, o índice funciona como espelho para lideranças públicas e privadas confrontarem questões desconfortáveis sobre suas prioridades efetivas. Entre discurso sobre inovação como estratégia nacional e alocação real de orçamentos há frequentemente abismos. Entre proclamações sobre inovação responsável e práticas concretas de governança, há desconexões. Entre objetivos de inovação inclusiva e resultado que concentra benefícios em grupos privilegiados, há hiatos. O índice não resolve essas contradições, mas as expõe com clareza que merece respostas.
A paisagem de inovação global em 2021 é, portanto, mais dinâmica e menos previsível do que em períodos anteriores. Economias tradiconais de inovação mantêm vantagens, mas enfrentam desafios crescentes. Economias emergentes demonstram potencial e resiliência. Tecnologias de fronteira abrem possibilidades extraordinárias para resolver desafios humanos. Simultaneamente, riscos éticos, sociais e ambientais proliferam. Nesse contexto, questão central não é mais se inovação acontecerá – claramente acontecerá. Questão fundamental é se será inovação ao serviço de humanidade como um todo, ou se continuará concentrada em interesses de poucos. A resposta dependerá de escolhas que sociedades fazem hoje sobre prioridades, regulação, distribuição de recursos e visão de futuro que desejam construir.
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